12. Relampiano (2)

"A cidade cresce junto com o neném"





Cresci numa época em que se tinha uma crença social mais ou menos comum: a do selfmademan, ou seja, a crença de que é possível para um homem "fazer-se" sozinho na vida, desde que ele seja uma pessoa esforçada e determinada.

Dentro dessa ideologia, não importava qüão humilde fosse a origem da pessoa, pois, com trabalho duro e determinação ele haveria de "se fazer" tornando-se, assim, um homem rico. E o mérito, obviamente, caberia somente a ele.

Esta é uma ideologia basilar do capitalismo e, embora eu tenha crescido num tempo em que acreditava muito nela, descobri recentemente que esta ideologia (ao que me parece, originalmente, norte-americana) já vinha sendo disseminada no Brasil desde o início do século XX.

Bem, meu objetivo aqui não é o de fazer uma crítica ao selfmademan. Até mesmo porque, hoje em dia, esta não parece mais ser uma ideologia muito em boga - embora este presente aqui e acolá.

Mas, embora esta ideologia não seja algo propriamente ruim, ela parece estar baseada em algo extremamente ingênuo: o pressuposto de que uma pessoa pode realizar-se sozinha.

Digo ingênuo porque, como sabe qualquer pai de família, dependemos das pessoas desde o dia do nosso nascimento. Sem contar os professores, mestres, amigos, pais. Em suma: há toda uma rede de interdependência cuja subjetividade contribui decisivamente para aquela pessoa que nos tornamos.

Concordo que há algo honrado em alguém que, vindo de uma origem humilde, conseguiu subir na vida com determinação e honestidade. Este é o lado bom do selfmademan.

O lado ruim, no entanto, é que nem sempre as pessoas contam com condições favoráveis para esta asenção havendo, não raro, dependentes que nem sempre podem acompanhá-lo nesa busca que, convenhamos, não é algo universal.

Assim, do lado ruim surge o lado nefasto. Mas, antes de entrar nesse aspecto, gostaria de mostrar o início da canção Relampiano, de Lenine, que me conduziu a essas reflexões:

Todo dia é dia, toda hora é hora
Neném não demora pra se levantar
Mãe lavando roupa, pai já foi embora
E o caçula chora pra se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco
Hay que endurecer um coração tão fraco
Pra vencer o medo do trovão
Sua vida aponta a contramão
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém

Como se vê, trata-se de uma narrativa de uma família esforçada que trabalha duro: logo de manhã, a mãe já está lavando roupa, o pai já saiu para trabalhar, o filho já está desperto para ir vender drops no sinal e até mesmo o caçula já se prepara para essa vida dura nma espécie de adaptação parcial do lema de Che Guevara: "hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás".

Na segunda parte da música, após o refrão, a narrativa continua a descrição do dia-a-dia dessa vida num barraco onde vemos a mulher aora passando roupa e sabemos, pela descrição, que ela está grávida aguardando um novo filho. A partir desse ponto da música, surge então alguns índices do que chamei de aspecto nefasto da crença do selfmademan:

Tudo é tão normal, tal e qual
Neném não tem hora para ir se deitar
Mãe passando roupa do pai de agora
De um outro caçula que ainda vai chegar
É mais uma boca dentro do barraco
Mais um quilo de farinha do mesmo saco
Para alimentar um novo João Ninguém
E a cidade cresce junto com neném

Como diz a música, o "outro caçula" que a mãe espera se tornará, aos olhos da cidade, um "novo João Ninguém" ou "farinha do mesmo saco". Em suma: é como se, mesmo antes de nascer, ele já estivesse condenado a não tornar alguém importante.

Assim, apesar desa família dar duro no trabalho, o destino pré-determinado dessa criança pobre para revelar que a ideologia do selfmademan não se aplica a determinados estratos sociais que estão apartados dessas condições de desenvolvimento social e humano que deveriam ser igualitárias mas não são.

Meditando nesse assunto, acabei me deterndo sobre o seguinte texto bíblico que diz que:

"Depois voltei-me, e atentei para todas as
opressões que se fazem debaixo do sol;
e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos
e dos que não têm consolador, e a força estava do lado
dos seus opressores; mas eles não tinham consolador."
[Eclesiastes 4:1]

Fiquei então me perguntando se as condições de vida, no caso narradas pela música de Lenine, seriam ou não frutos de uma opressão. Trata-se de uma questão que carece de esclarecimento, pois nada mais revoltante do que ouvir alguém de uma classe mais elevada dizer que os pobres são os próprios responsáveis pelas suas condições econômicas.

Sim, há uma dose de responsabilidade pessoal no destino de cada indivíduo, mas se as condições não são iguais para todos por que então as exigências de ascenção deveriam ser?

Nesse caso, parece-me que exigir dos mais pobres o mesmo que se exige de um igual (do ponto de vista econômico) é uma forma de participar da opressão que o sistema econômico aplica aos mais pobres que são, também, os mais desfavorecidos do acesso às condições que lhe permitiriam melhorar suas vidas. Assim, para não nos tornarmos co-participes dessa opressão, creio que, na falta de algo melhor a dizer, diveríamos fazer apenas um silêncio respeitoso.